No dia 9 de julho de 2025, às 17h17 (horário de Brasília), o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicou uma carta endereçada ao presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciando que, a partir de 1º de agosto de 2025, o país aplicará uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados ao território norte-americano [1].
Ainda no mesmo dia, por volta das 14h32, o investidor Spencer Hakimian detectou um salto abrupto na cotação do dólar e, consequentemente, uma desvalorização do real, indicando que um operador teria vendido reais e comprado dólares em volumes atípicos [2]. Segundo o mesmo investidor, por volta das 17h20 — pouco após o anúncio oficial da tarifa por Donald Trump —, ocorreu o movimento inverso: alguém teria vendido grandes quantidades de dólares e comprado reais.
De acordo com Hakimian, o suposto operador teria obtido um lucro de aproximadamente 2,5% na operação cambial, o que, considerando os níveis usuais de alavancagem no mercado de câmbio (10x a 20x), representaria um ganho real entre 25% e 50% em menos de três horas.
A operação indicada por Hakimian rapidamente ganhou repercussão midiática, pois, além de configurar uma possível anormalidade no mercado de câmbio, sugere que o responsável se valeu de informação privilegiada acerca da política tarifária antes de sua divulgação oficial, utilizando-a para lucrar com a oscilação cambial.
Investigação a partir da AGU
Diante dos fatos, a Advocacia-Geral da União (AGU) comunicou o ocorrido no âmbito do Inquérito nº 4.995/DF, que tramita perante o Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de apurar eventual prática do crime de insider trading, previsto no artigo 27-D da Lei nº 6.385/76 [3].
Mas será que a conduta em questão — caso verdadeira — se enquadra na tipificação do artigo 27-D da referida lei e é possível discutir quem poderia ser responsabilizado à luz da legislação penal brasileira?
O crime de uso indevido de informação privilegiada (insider trading) está previsto no artigo 27-D da Lei nº 6.385/76, que disciplina o mercado de valores mobiliários. Segundo a norma, pratica o delito aquele que:
“Art. 27-D. Utilizar informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários.” [4]
A norma penal, segundo sua redação, alcança tanto os denominados insiders primários, ou seja, aqueles que têm acesso direto à informação e sobre ela recaem deveres legais de sigilo, quanto os insiders secundários, que, embora não tenham vínculo direto com a origem da informação, dela se aproveitam para obter vantagem indevida.
Requer-se ainda, segundo Netto, Mello e Bertolino, que “a informação não só diga respeito a fato relevante, como seja ela própria do mesmo modo relevante para a obtenção da vantagem econômica [5]“, de maneira que, para sua consumação, é preciso que a informação sobre determinado fato seja especialmente relevante para o alcance da norma criminosa e que haja relação direta entre a informação privilegiada e a vantagem obtida com a negociação de valores mobiliários.
A Resolução CVM nº 44/2021 [6], que orienta a aplicação do tipo penal, define como informação relevante:
Art. 2º Considera-se relevante, para os efeitos desta Resolução, qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável:
I – na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados;
II – na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; ou
III – na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados.
Além disso, outro ponto relevante é que a norma penal exige que o agente não apenas venha a auferir qualquer vantagem indevida, mas apenas e tão somente vantagem indevida que decorra de negociação de valores mobiliários, conforme definidos no rol artigo 2º da Lei nº 6.385/76:
Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I – as ações, debêntures e bônus de subscrição;
II – os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;
III – os certificados de depósito de valores mobiliários;
IV – as cédulas de debêntures;
V – as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;
VI – as notas comerciais;
VII – os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;
VIII – outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes;
IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.
X – os ativos integrantes do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) e os créditos de carbono, quando negociados no mercado financeiro e de capitais.
Moedas não são afetadas pelo crime
Moedas — nacionais ou estrangeiras — não se enquadram no rol de valores mobiliários e, portanto, não são afetadas pelo crime do artigo 27-D da Lei nº 6.385/76.
Diante disso, é correto dizer que, do ponto de vista dogmático-penal, o agente que, eventualmente munido de informações privilegiadas, venha a realizar operações de câmbio simples, obtendo vantagens indevidas, não pratica o crime de “insider trading”, pois, neste caso, a negociação que gerou a vantagem indevida não ocorreu por intermédio de valores mobiliários.
Essa posição é compartilhada por outros autores, como Pierpaolo Cruz Bottini, em opinião oferecida nesta ConJur [7], e Phillipe Alves do Nascimento, em sua tese de doutorado junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo [8].
A inaplicabilidade da norma penal às operações de câmbio simples não decorre apenas de interpretação literal, mas também da consideração do bem jurídico tutelado. O artigo 27-D da Lei nº 6.385/76 protege a capacidade funcional e a confiabilidade do mercado de capitais, o que se reflete na própria localização do dispositivo, inserido no Capítulo VII-B da lei, intitulado “Dos Crimes Contra o Mercado de Capitais[9]”.
Contratos futuros de dólar entram como valores mobiliários
Situação distinta, porém, ocorre quando as operações são levadas a cabo por meio de contratos futuros de dólar, negociados em bolsa, que, nos termos do artigo 2º, IX, da Lei nº 6.385/76, são classificados como valores mobiliários derivativos. Nesse caso, diferentemente das operações de câmbio simples, há incidência da norma penal prevista no artigo 27-D, visto que a obtenção da vantagem indevida perpassa por negociação de valores mobiliários.
Portanto, é possível concluir que a configuração do crime de insider trading, nos termos do artigo 27-D da Lei nº 6.385/76, exige a presença cumulativa dos seguintes elementos:
- acesso a informação relevante e ainda não divulgada ao mercado;
- capacidade dessa informação de influenciar, de modo ponderável, a cotação de valores mobiliários ou a decisão de investidores;
- utilização da informação com o objetivo de obter vantagem indevida, em benefício próprio ou de terceiro; e
- efetiva negociação de valores mobiliários.
Podem ser responsabilizados penalmente, na qualidade de autores ou partícipes, tanto os chamados insiders primários — aqueles que detêm a informação em razão de cargo, função, posição ou vínculo com a fonte da informação — quanto os insiders secundários, que, embora sem relação direta com sua origem, dela se valem para obter vantagem econômica indevida por meio da negociação de valores mobiliários. Também incorre em responsabilidade penal quem, mesmo sem realizar operações no mercado, divulga ou repassa informação relevante e sigilosa obtida em razão de cargo, posição ou relação comercial, profissional ou de confiança com o emissor (artigo 27-D, §1º).
Na ausência de qualquer desses requisitos — especialmente quando a negociação ocorre fora do mercado de capitais, como no caso de operações de câmbio simples —, não há subsunção típica à norma penal. Nesses casos, ainda que a conduta possa ser eticamente reprovável ou mesmo ensejar responsabilização em outras esferas, não estará caracterizado o crime de insider trading, cuja repressão se vincula de forma estrita à proteção do mercado de capitais e à preservação da confiança dos investidores em sua integridade.
Referências
ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. AGU pede ao STF investigação de suspeitas do uso de informações privilegiadas no mercado cambial. Portal Gov.br, Brasília, 19 jul. 2023. Disponível aqui.
BRASIL. Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976. Dispõe sobre a constituição e o funcionamento da Comissão de Valores Mobiliários e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 8 dez. 1976. Disponível aqui.
COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS – CVM. Resolução CVM nº 44, de 29 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a prevenção e combate a práticas de uso indevido de informação no mercado de valores mobiliários. Diário Oficial da União, Brasília, 30 dez. 2021. Disponível aqui.
CONSULTOR JURÍDICO. JBS não cometeu crime ao comprar dólares antes de denúncias, dizem especialistas. São Paulo, 18 maio 2017. Disponível aqui.
HAKIMIAN, Spencer. @SpencerHakimian. Foto com a placa “Insider trading is not cool”. 2024. Disponível aqui.
NASCIMENTO, Philippe Alves do. Insider trading e o crime de uso indevido de informações privilegiadas no mercado de capitais. 2022. Tese (Doutorado em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. doi:10.11606/T.2.2022.tde-03102022-101809. Acesso em: 30 jul. 2025.
NETTO, Alamiro Velludo Salvador; MELLO, Juliana Villa; BERTOLINO, José Rodolfo Juliano. O crime de insider trading e a nova Resolução CVM 44/2021. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, n. 357, p. 10–17, abr. 2022. Disponível aqui.
TRUMP, Donald J. @realDonaldTrump. I will be announcing the TRUTH about the Election… 2024. Disponível aqui.


